Perdi a conta de quantas vezes assisti esta obra prima!
Shirley Valentine é uma peça de teatro que virou filme e depois virou novamente peça,inclusive aqui no Brasil. Vi trechos da peça no youtube, mas prefiro o filme mesmo.
È fundamental ver este filme para entender a transformação sofrida pelas mulheres nos anos 70 e 80,quando começamos a virar o que somos hoje e é interessante ver o início da nossa transformação representado nesse filme/peça de teatro tão sensível e bem dirigido.
Shirley é como tantas de nós,uma dona de casa de classe média baixa que teve seu potencial obscurecido por sua insegurança. O filme começa com uma música muito triste, aquarelas em azul pálido mostrando a rotina da dona de casa.A excelente Pauline Collins no papel de Shirley,entra na cozinha e cumprimenta a parede.Diante da nossa confusão ela encara a câmera e nos diz: “E que mal tem isso? Duas casas a frente,tem uma mulher que fala com o micro-ondas! Falar com o micro-ondas...parede,onde esse mundo vai parar?”
E ela prossegue o diálogo/monólogo, hora falando com a parede,hora falando com o espectador.
Shirley teve uma vida muito simples, muito abaixo dos seus sonhos e do seu potencial. Na juventude,foi humilhada por uma professora rígida,que a considerava burra e acabou acreditando nisso.
Casou-se jovem com Joe e até que foi feliz com ele enquanto criava os dois filhos.
Atualmente vive para cumprir a rotina imposta pelo marido,que se tornou um quarentão amargurado.Nas palavras de Shirley,Joe “não é um cara mal, apenas não é bom!”
Lá fora chove sem parar,Shirley suspira enquanto bebe uma taça de vinho e devaneia: “Ah,como seria bom tomar uma taça de vinho no país onde nascem as uvas, a beira do mar,vendo o por do sol!
Então percebemos que a tolerância de Shirley com aquela vidinha boba está por um fio, ela está prestes a sair do casulo, a trocar de casca, a deixar de ser quem ela finge ser por puro comodismo e aceitar quem ela realmente é, e pagar o preço disso.
A vizinha de Shirley pede a ela que alimente o seu cachorro enquanto estiver fora e Shirley se compadece do animal, que é alimentado pela dona exclusivamente com granola. Ela dá a carne que acabou de comprar para o jantar ao cachorro e prepara para Joe ovos e fritas. Joe come ovos e fritas todas as terças e é uma quinta feira, ele quer bife e fica furioso,a ponto de atirar o prato na Shirley. Só essa cena já vale um Oscar! Os atores são perfeitos,há uma sintonia entre eles que faz mesmo com que eu entre na cena, com que sinta toda a opressão vivida por aquela mulher, de quem já me sinto amiga!
Este é o momento decisivo na vida de Shirley.Ela, que sempre quis conhecer o mundo, se prepara as escondidas e viaja com uma amiga para a Grécia. Ela quase desiste pois no dia da viagem a filha aparece e já começa a fazê-la de empregada, . “O que estou fazendo parede? Não tem cinco minutos que ela chegou e já estou correndo para cima e para baixo feito um robô!”
(Aviso: se você não gosta de saber o final dos filmes e deseja assistir este,pare de ler agora,pois vou contar tudo daqui para frente).
Já durante o vôo, a amiga que se diz feminista mas que é apenas carente e amargurada porque seu marido a trocou pelo leiteiro, abandona Shirley e vai atrás de um cinquentão que conheceu no vôo e Shirley se vê sozinha na Grécia, conversando com uma pedra na praia.
Aí percebemos como nos anos 80 ainda era complicado ser uma mulher só,os casais se chocam ao vê-la sozinha, as pessoas estranham, “o que essa mulher faz viajando sozinha?Só pode estar atrás de sexo!”
Shirley sai do hotel após uma discussão com alguns hóspedes, encontra um bar, pede vinho e que coloquem uma mesa lá fora,para que ela possa realizar seu sonho de tomar uma taça vinho,vendo o por do sol. Isso não a faz feliz.Ela reflete que teve uma vidinha tão medíocre,abafou tantos sentimentos, enquanto havia tanta coisa a aproveitar.
Costas,o dono bar,um sedutor profissional de turistas solitárias a convida para passear de barco no dia seguinte e ela aceita. Com ele, ela se apaixona pela primeira vez, mas “não por ele e sim pela idéia de viver!”
Passado algum tempo, uma idéia começa a se formar em sua mente: “E se eu não voltasse, faria diferença para alguém? É claro que notariam que eu não estou lá, mas eu faria realmente falta?”
No aeroporto, Shirley toma coragem e decide: seus filhos estão criados, o marido não liga a mínima e então ela sai correndo e chega no bar de Costas, que já está seduzindo outra turista. Ela não se incomoda, tudo o que deseja é um emprego.
O tempo passa,Shirley está cada dia mais feliz e Joe,o marido, se desespera finalmente percebendo o quanto ela era importante e pouco valorizada. Ele acaba indo para a Grécia atrás de Shirley que o espera sentada na mesa a beira mar.Ela suspira ao vê-lo, tão sério, de terno e gravata embaixo do sol. Ela não o olha com mágoa, apenas deseja que ele fique o bastante, para sentir o sol em seu corpo e ser feliz.
Shirley está tão diferente que ele não a reconhece, os dois sentam, começam a conversar e percebemos que não só Shirley, mas também Joe está vivendo uma transformação profunda!
Shirley Valentine
De Lewis Gilbert, Inglaterra-EUA, 1989.
Com Pauline Collins, Tom Conti, Julia McKenzie, Alison Steadman,
Roteiro de Willy Russell, baseado em sua peça de teatro
Música Willy Russell
Cor, 108 min